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A compreensão íntima do leitor em “Um Solitário à Espreita”, de Milton Hatoum
"Foi numa palestra proferida no SESC de Araraquara que escutei atentamente o escritor Milton Hatoum anunciar o lançamento de seu mais recente livro, o dito livro era 'Um Solitário à Espreita'. A obra é uma compilação de crônicas que o autor escreveu em jornais e revistas no começo deste século. O próprio Hatoum na nota do autor considera ser um 'cronista tardio', mas como diz o ditado 'antes tarde do que nunca', Milton Hatoum presenteia seus leitores com mais uma obra singular."

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Foi numa palestra proferida no SESC de nAraraquara que escutei atentamente o escritor Milton Hatoum anunciar o nlançamento de seu mais recente livro, o dito livro era “Um Solitário à nEspreita”. A obra é uma compilação de crônicas que o autor escreveu em njornais e revistas no começo deste século. O próprio Hatoum na nota do nautor considera ser um “cronista tardio”, mas como diz o ditado “antes ntarde do que nunca”, Milton Hatoum presenteia seus leitores com mais uman obra singular.

O livro é dividido em quatro seções – nDança da Espera, Escorpiões, Suicidas e Políticos, Adeus aos Corações nque Aguentaram o Tranco, Dormindo em Pé, Com Seus Sonhos – e publicado nsomente no formato de bolso, para baratear a venda, sou imensamente nagradecido pela inciativa. A obra fornece diversas temáticas em relação àn memória jovial do cronista em Manaus, a convivência familiar, pessoas nque percorrem boa parte de sua vida, alguns detalhes da criação de seus nromances e, principalmente, a opressão da época da Ditadura Militar nos npaíses sul-americanos.

Dentre essas temáticas, na leitura do nlivro interessei-me sobre o tema em torno da desigualdade social. Este ntema é latente nas crônicas de Hatoum, mesmo que não sejam, em alguns ntextos, destacadas, as sutilezas das críticas das condições precárias den infraestruturas são encaradas pelo cronista de forma bruta e nmelancólica, como no caso da crônica “Papai Noel no Norte” em que faz o ncontraste sobre as festividades da época de Natal com a catástrofe ncausada pela chuva nas metrópoles: “Em São Paulo, com as chuvas e nenchentes nessa época natalina, penso que seria melhor trocar os trenós npor canoas e botes”. Em outra crônica, “Na Cadeira do Dentista”, o que nseria apenas uma consulta ao odontólogo resulta em uma reflexão do ncronista sobre os péssimos investimentos governamentais para a classe nsocial baixa: “Um aluno que atendia a uma mulher idosa quis explicar a ncausa de um sangramento na gengiva da paciente. […] Depois ele disse n“Esta senhora nunca tratou dos dentes, por isso ela perdeu quase todos”.n E então soube que de cada dez pacientes, três eram desdentados”.

Situações assim observadas pelo autor ntornam-se o questionamento arremessado ao leitor para fornecer uma nreflexão sobre o cotidiano e na tentativa de fazê-lo se posicionar em nrelação às precárias condições de um país que se encontra em um abismo ndesigual em suas políticas públicas. Continuando a mesma crônica o autorn ironiza o projeto do Governo e interroga se aprender outra língua nesten setor irá ajudar e solucionar o árduo percurso de atender os mais nnecessitados: “Mas será necessário aos alunos de odontologia um curso den francês instrumental se milhões de brasileiros pobres não podem escovarn os dentes e nem tratá-los?”.

Com uma crítica ácida sobre os ninvestimentos atrasados e pessimamente aplicados, assim como a nexorbitante aplicação de dinheiro público nas construções de estádios npara a Copa do Mundo de 2014 no país, Hatoum profetizou as manifestaçõesn de junho e julho deste ano com a crônica “Estádios Novos, Miséria nAntiga”, publicada um ano antes no jornal Estado de S. Paulo n(22/06/2013), apontando as falhas de se construir um estádio em Manaus npara o evento mundial, que substituiria o Tartarugão, estádio inauguradon em 1970 e projetado pelo arquiteto Severino Mário Porto, conhecedor do nclima e da infraestrutura da região amazônica. Hatoum explica que o nTartarugão deveria ser reformado e não demolido, o que aconteceu no núltimo caso foi que “O estádio foi demolido para dar lugar a uma obra ngigantesca, caríssima, faraônica”.

O seu posicionamento de observador sai dan espreita para apontar tal ignorância e relatar as terríveis condições nsociais que sua terra natal, Manaus, sofre em décadas: “Manaus é uma dasn metrópoles brasileiras mais carentes em infraestrutura. Os serviços npúblicos são péssimos, na zona leste da cidade proliferam habitações nprecárias, a violência atinge níveis alarmantes”. Esta brutalidade em nque Hatoum escreve faz o leitor refletir e se posicionar sobre os nsuperfaturamentos que os “monumentais” estádios estão deglutindo para nvomitar a sede de um evento internacional de durabilidade de apenas um nmês, mas as precariedades que cobrem o país, principalmente na região nNorte e Nordeste, ocorrem há séculos.

Esta crônica, como havia já citado, é nprofética em relação às tomadas das ruas no país no meio deste ano, o nmar de gente que cobriu as principais avenidas do pais, tendo como nevento a Copa das Confederações. A população desencantada manifestou-sen sobre os gastos do dinheiro governamental com a Copa do Mundo, nreivindicando melhorias em outros setores públicos, sendo que muitas nvezes esses ativistas foram denominados pejorativamente pela imprensa ncomo “baderneiros” e “vândalos”.

Peço licença a Milton Hatoum para colocarn neste corpo de texto o trecho final da crônica “Estádios Novos, Misérian Antiga”, de modo a apontar que o cronista como sempre observou o nborbulhar do caldeirão explodido em junho de 2013:

[…] Mas agora é ntarde. Sim, implodam todos os estádios! Construam obras colossais e nfaturem montanhas de ouro! Superfaturem tudo: desde a demolição até a npintura dos camarotes da CBF e patrocinadores! Joguem no entulho e nos nesgotos a céu aberto a dignidade e a esperança do povo brasileiro. nEnterrem de uma vez por todas a promessa de cidadania! Caprichem na nmaquiagem urbana e escondam (pela milésima vez) a miséria brasileira, nbem mais antiga que o futebol. E quando a multidão enfurecida cobrar a ndignidade que lhe foi roubada, digam com um cinismo vil que se trata de numa massa de baderneiros e terroristas.

Digam qualquer mentira, mas aí talvez seja tarde. Ou tarde demais.

Explorei este tema no livro “Um solitárion à espreita”, de Milton Hatoum, para mostrar que na crônica encontramos ndiversas informações para a reflexão aprofundada das situações do nosso ncotidiano. Encontramos na linguagem de escritores como Hatoum a ninterpretação da realidade e o posicionamento, mesmo que à espreita, nan tentativa de solucionar os problemas sociais de modo abrangente. O nolhar à espreita de um cronista é de diversas facetas e o de Milton nHatoum não é diferente, mesmo tardio fornece em sua análise a ncompreensão íntima que o leitor refletirá sobre o múltiplo cotidiano.

Um Solitário à Espreita
nEditora: Companhia das Letras
nAno: 2013
nPreço Médio: R$25