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Dar uma volta, passear, dar um rolezinho.n O que outrora era uma singela expressão popular para um “vamos dar uma nvoltinha?”, agora tem sido frequentemente usada para descrever as nreuniões de jovens, principalmente de periferia, em shoppings centers. nNo dia 11 deste mês, um destes rolezinhos reuniu cerca de 6 mil pessoas nnum shopping de Itaquera, na região leste de São Paulo, terminando em nconfronto e abuso da polícia.
Lendo as notícias que pululam na internetn e nas mídias impressas, uma pergunta estacou no meio do meu caminho nfeito uma pedra drummondiana: mas por que é que esses jovens não são nbem-vindos no templo do consumo? Afinal, o que mais querem os nacumuladores de capital senão consumidores? E é sobretudo isso que essesn jovens são, consumidores. Embalados pelo funk ostentação, eles querem nexibir os troféus que só o consumo pode fornecer, querem pertencer nàquele espaço e, partindo da lógica econômica, o que melhor poderia nbeneficiar o sistema capitalista que uma cultura que cultua o consumo e nreitera a ideologia de que é preciso ter para poder ser? Tudo parece nestar confuso, afinal, não é exatamente essa a mesma ideologia que move nas classes média e alta brasileiras? Parece até estória de novela nmexicana, como se fosse um ciuminho que leva à loucura aquelas classes nque outrora tinham o shopping como refúgio para a ausência de espaços npúblicos nas cidades brasileiras. Mas só parece. De ciuminho não tem nnada, o medo e a consequente intervenção para que estes jovens deixem den frequentar os shoppings é motivado pelo preconceito racial e de classesn que essa faixa da sociedade brasileira exibe de peito aberto sob o nomen de “civilização”. Basta uma pesquisa rápida na web para notar que a npalavra que mais aparece nas argumentações a favor da repressão destes njovens é “civilização” – seguida de perto por “cultura”. “São animais, nnão são civilizados”, “não têm cultura”, etc.
Enquanto e por conta disso, os rolezinhosn agora são uma manifestação inegavelmente política e diversos outros nestão sendo organizados como forma de afirmar aquele espaço como um nespaço também de quem mora na periferia, também de quem se veste ndiferente e tem gírias diferentes de quem vive nos condomínios e nas náreas valorizadas da cidade – gente essa que também ouve aquele funk, nque veio justamente da periferia, nas disputadas e seletivas baladas quen costumam frequentar. Quem antes se refugiava nos shoppings, asseguradosn por uma segregação velada, agora teme. Teme porque cultiva a mentalidade de que tudo bem se vivemos em uma sociedade desigual, desde que não se veja a desigualdade, a diferença.
A despeito do que defendem aqueles que nacreditam que literatura e sociedade não se misturam – basta lembrar do nque disseram a nossa ministra da cultura e nosso vice-presidente na nFeira do Livro de Frankfurt, após o discurso do escritor Luiz Ruffaton – tudo isso me fez relembrar algumas leituras. A primeira delas é nBaudelaire (e pego bastante coisa emprestada da leitura que Marshall nBerman faz do autor): o poema em prosa “Os olhos dos pobres”, Spleen de Paris,n nº 26. No poema, o café é o equivalente direto dos shoppings, que a ncada dia se multiplicam agregando lazer ao consumo, ocupando o espaço ndeixado pela falta de áreas públicas: “[…] você quis se sentar num ncafé novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e ján mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café nresplandecia”. O entulho, ruína do passado há pouco presente ali, parecen nos remeter diretamente às ruas em que caminhamos todos os dias, onde on barulho das betoneiras e dos martelos anunciam que algo dali já não nmais será o mesmo. É a especulação imobiliária que transforma as nrealidades urbanas, realoca as pessoas em nome do dinheiro. Escola (pública) não valoriza o bairro e seus imóveis, shopping sim. Fica para trás quem não mais pode viver ali, vítimas dessa transformação promovida pelo capital:
Plantado diante de nnós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto ncansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um npequeno ser ainda muito frágil para andar […] Todos em farrapos. Estesn três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos ncontemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas ndiversamente nuançada pela idade.
Os olhos do pai ndiziam: ‘Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre nmundo veio parar nessas paredes.’ Os olhos do menino: ‘Como é bonito, ncomo é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós.’ nQuanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outran coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Essas pessoas também ficam fascinadas npelas maravilhas do consumo e da riqueza e, ainda que essas táticas de nsegregação urbana (shoppings vs áreas públicas) tentem mascará-las, os n“indesejados” ainda continuam lá e cada vez mais querem fazer também nparte daquele universo. Até que chega o dia em que eles lá estão, os n“indesejados”. A bem da verdade, eles sempre estiveram lá, mas agora se npode vê-los e então vem a reação: “[..] você me disse: ‘Essa gente é ninsuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não npoderia pedir ao maître para os tirar daqui?’. Troque o maître pela PM e pelos seguranças e voilà,n temos um shopping. É incrível como uma obra de 1869 pode retratar tão nbem uma realidade do presente. A verdade é que os valores burgueses npouco mudaram, assim tudo parece o mesmo.
Mas o leitor poderá pensar “mas isso já ntem mais de um século!” e tudo bem, vamos com algo mais recente. Na ncrônica “O homem sitiado”, do livro A Velhinha de Taubaté, de nLuis Fernando Verissimo, temos o típico cidadão que, embora ncompletamente envolvido nesses processos de segregação e desequilíbrio nsocial, não reconhece ou simplesmente ignora seu papel no ndesenvolvimento desse tipo de sociedade, aquele cidadão que vive agora nna
[…] última casa nda rua, espremida entre dois grandes edifícios, na frente de um terceiron maior ainda, atrás de outro ainda maior. Costumava dar longas ncaminhadas pelo bairro. Ia buscar o jornal e o pão, olhar as pessoas, nexercitar as pernas. Agora não podia fazer mais isto. Era perigoso natravessar as ruas. E havia os assaltos. Mesmo de dia. Depois do sétimo nassalto, desistiu de dar suas longas caminhadas. Desistiu do jornal n[…] Ainda experimentou caminhar na calçada em frente à casa, à ntardinha. Desistiu depois que uma moto, dirigida por um jovem obviamenten dopado, subiu na calçada e quase o imprensou contra uma parede.
Este cidadão e a faixa social a que ele npertence têm medo. Eles irão se isolar no alto dos prédios ou atrás dos nmuros e cercas dos condomínios fechados, com medo. Medo da transformaçãon que eles mesmos promovem. Desconhecem, ou são simplesmente cínicos, quen eles são os causadores do que eles mesmos chamam de barbárie, de falta nde civilidade – civilidade que eles “roubaram” para si.
Pensando melhor, eles têm razão em terem tanto medo. Se eu fosse um deles, me borraria de medo. Em Eles eram muitos cavalos,n de Luiz Ruffato, há um capítulo (?) denominado “47. O ‘Crânio’” e é nnele que podemos perceber o porquê do medo, do desespero dessa fatia da nsociedade brasileira. Já nas primeiras descrições do personagem n“Crânio”, podemos facilmente localiza-lo nos rolezinhos:
ele tem dezesseis anos quase um metro e setenta e cinco uns noventa quilos
né preto que nem a água preta que escorre no meio dos barracos
nos dentes brancos e bons como os de ninguém
“Crânio”, no entanto, tem nparticularidades que essas classes não parecem reconhecer. Para elas, nreina o estereótipo que serve apenas para fortalecer seus discursos e narraigar ainda mais os preconceitos. Pelas palavras de seu irmão:
já o crânio meu irmão não fuma nem cheira
npassa o dia inteiro lendo e comendo que ele fala são seus vícios
nlê tudo o que aparece e de tudo come
ntraz sempre à vista numa caixa de sapatos vazia
nremovedor gilete pano de pó cola-tenaz papelão
npega um livro todo desmilinguido
nfaltando capa emporcalhado semimorto
ntransforma em outro quase novo
O personagem não só não é usuário de ndrogas e/ou criminoso, imagens que reinam nos discursos anti-rolezinhos n(relacionados ao uso de drogas e aos arrastões), como também é naficionado pela leitura. A imagem que as classes dominantes constroem nsobre o jovem da periferia nunca passa por essas características e nvalores. Para essas classes, todos os jovens da periferia são ou serão nbandidos. Os jovens da periferia não têm e não podem ter cultura. Elas ndefendem estes estereótipos justamente para mascarar o perigo que, para nelas, representa um jovem fora deles, um jovem que, ao contrário daquelen cidadão que ignora e é cínico em relação ao seu papel na sociedade, quen se esconde e teme, sabe muito bem seu papel social e a condição de sua nclasse:
de vez em quando chamo ele pra tomar cerveja com a gente
nnuma balada firme lá pros lados do campo belo
nele vai e fica falando que a gente somos otários
ndá a cara pra bater vendendo coca a polícia fungando nas costas
nlogo logo vocês dançam ele diz
ne o bacana da mansão do morumbi
nque controla de verdade a muamba
nestá lá cada vez mais rico filhos estudando no estrangeiro
ncarro importado blindado na porta segurança
nmordomo babá jardineiro copeira cozinheira arrumadeira
nos homens comprados na palma da mão
ne a gente feito mosca pousada na bosta
nesperando a hora do pipoco feito formiga na fila do formigueiro
nesperando a hora do coturno
naí o pessoal fica meio puto
nmas ninguém reclama porque sabe que no fundo o crânio tem razão
nele sempre tem razão
n[…]
nporque ele fala seus babacas os ricos não estão nas ruas
nestão lá no alto em helicópteros
ncagando de rir de mim de você aqui embaixo se matando
no crânio é revoltado
npor ele a gente pegava os trabucos ia fazer uma revolução
nele só acha certo assalto a banco a carro-forte
nsequestro de milionário ocupação de terra e de casa sem dono
o crânio é foda
O jovem da periferia assume o papel ndaqueles que sempre viram a sociedade e sua dinâmica de cima. “Crânio” ntem total ciência dessa dinâmica social e sabe muito bem quem são seus nprotagonistas. Os jovens dos rolezinhos também, aos poucos, vão tomando nciência disso e agora se organizam, transformam o “rolê” em protesto, emn afirmação. E as classes economicamente estabelecidas, temem. A nrepressão violenta contra esses jovens, que vem acontecendo nos nshoppings, também está neste capítulo da obra de Ruffato:
outro dia o crânio foi barrado na boca da favela
nos milicos estavam fazendo um comando
nmandaram ele apresentar os documentos
ncacete ele não tem carteira-de-trabalho nem erre-gê nem cic
na polícia mandou ele deitar no chão sujo
na cara encostada no riozinho de esgoto
ncolocaram algemas nos punhos e nos calcanhares dele
ndeixaram ele assim deitado humilhado a comunidade inteira revoltada
ndepois jogaram ele no camburão e sumiram
npor essa são paulo tão comprida
nencheram ele de porrada torturaram
no crânio ficou mal logo ele
ncontra quem ninguém tem bronca
E foi isso o que desencadeou toda a nsituação que temos hoje nos jornais e na televisão. A periferia nconcentra, por conta justamente da segregação social promovida pelas nclasses altas da sociedade, todas as forças capazes de desencadear uma nrevolução social. “Crânio” é negro e vive na favela. É inteligente, nautodidata e intelectualizado. Tem total ciência de sua condição social en racial e sabe que a desigualdade e a luta de classes são as fontes da ncriminalidade e da violência. Ele é a força velada e a ameaça real de numa violenta revolução social. O medo vem daí, as periferias estão ncheias de crânios e em algum momento uma reação emerge, o que acontece npelo irmão de “Crânio”:
estou indo agora no barraco pegar minha glock com o crânio
nporque ele guarda nossas armas e as balas na caixa de livros
ne ele como sempre vai perguntar qual o busílis e vou ter que mentir
nporque o crânio não ia concordar com o que a gente vai fazer
nporra o crânio este é o mal dele o crânio tem um coração destamanho
Está chegando a tal hora em que o coraçãon da periferia, o coração daqueles jovens, não serão mais “destamanho”. En isso deve dar bastante medo.