Acordei cedo, não consegui dormir direito por causa do barulho de motos rodeando o quarteirão durante toda a madrugada, além disso, fui sacudido da cama com o latir dos vira-latas desesperados para com os pobres cidadãos que saem para trabalhar antes da aurora do dia.
Assim que tomei meu café, olhei no relógio e atrasado por causa da pressa dos minutos ou quem sabe do meu sossego em não deixar passar nenhum hábito: Fechar cortinas, trancar portão e por Deus! O portão ficou destrancado esta noite, que perigo!
Na avenida o comerciante mais antigo do bairro acena com a mão por detrás do vidro blindado do caixa da padaria, enquanto recorda de uma coronhada no último assalto que sofreu. Pouco mais a frente uma professora do ensino fundamental antes de entrar na sala do principal colégio da cidade recita em voz baixa uma prece que sua mãe lhe instruíra para qualquer momento difícil que passar e este é um deles. O sinal toca para a primeira turma do dia e a lembrança daqueles socos de um de seus alunos lhe deu quando foi repreendido por não copiar a tarefa da lousa vem à tona.
Logo em frente saúdo a dona Arminda 87 anos que atentamente olha através da janela de seu sobrado para toda a rua, um hábito criado antes de abrir o portão, pois fora vítima de sequestro relâmpago quando saia de casa num sábado de manhã para fazer compras.
E aquela moça ali com sono no trem lotado, esperou por 40 minutos até conseguir entrar e continua segurando sua bolsa fortemente com as alças dobradas pelo menos três vezes no braço direito, precaução desde que um vadio tomou sua mochila com todos seus pertences e saiu correndo mundo afora, ninguém ajudou nem mesmo o “bombadinho” de academia na poltrona do lado.
No hospital público em frente à estação de trem uma enfermeira tenta acalmar um senhor depois de receber um pedido de cateterismo por suspeita de obstrução da artéria do coração, mas ela lembra-o que não há previsão de vagas. A enfermeira pelo olhar torce para que aquele simpático senhor não se torne mais um número estatístico das mortes por falta de atendimento médico da cidade.
Meu Deus! O que aconteceu com esta cidade? O que aconteceu com nós cidadãos? Ando de saco cheio dessa pressa de chegar, depois de partir, porque tenho sempre tantas coisas por fazer! Eu não tenho nem tempo para tomar um café no meio da tarde com bolo de fubá e conversa fiada. Não consigo sair de casa sem uma rota de atividades, desligar todos os alertas de perigo, muito menos caminhar vagarosamente como as crianças que dão seus primeiros passos, tomar um sorvete aos pouquinhos com pena de acabar, esquecer-se do mundo contemplando a chuva na janela. Esta cidade já foi mais gentil.